O Expresso Pinga-Pinga

Para: Revista Tempo de Empreender Rondônia – Sebrae / Instituto Camargo Corrêa

Texto: Gleice Mere

Todos os dias milhões de trabalhadores rurais brasileiros são obrigados a vencer dezenas de quilômetros a pé, de bicicleta ou a cavalo até chegarem a uma estrada de rodagem por onde passa o transporte coletivo que os leva a centros urbanos locais onde têm acesso a bens de consumo industrializados, serviços médicos etc. Centenas dos trabalhadores assistidos pelo projeto Tempo de Empreender têm essa vivência que é descrita neste texto de forma subjetiva, mas fiel ao dia a dia dos produtores rurais.

Ilhas e praias com palmeiras, esta é a paisagem que se vê das janelas do ônibus sem ar-condicionado e de assentos coloridos da empresa Tekla que, duas vezes por dia, parte da rodoviária improvisada do povoado de União Bandeirantes, zona rural, com destino ao centro de Porto Velho.

A construção, de paredes de madeira com pintura alaranjada, estampa uma paisagem tropical que fica a centenas de quilômetros distante desse cenário amazônico de barro vermelho e ruas corroídas pela enxurrada das chuvas equatoriais que assolam o traçado urbano desse distrito rural a 170 km da capital rondoniense. Em União Bandeirantes o passageiro parece voltar no tempo. O terminal rodoviário é, na realidade, um mercado com estacionamento coberto para o embarque e desembarque de passageiros. Um local multiuso onde se pode desembarcar, usar o telefone público, fazer compras e embarcar de volta para casa munido de todos os produtos de primeira necessidade, ferramentas e guloseimas. Os doces, estrategicamente, ficam sobre o balcão do caixa, que não possui caixa registradora. Há somente uma calculadora, uma gaveta e uma caixa onde se coloca os cartões dos clientes que compram fiado. O caixa do terminal é o lugar mais sedutor para as crianças que circulam por ali. Elas observam as balas coloridas, chicletes, pirulitos acomodados em um baleiro de vidro giratório como se ali fosse a porta de entrada do paraíso.

O trajeto

Ao redor do ônibus carros e motos disputam um lugar à sombra. O ônibus espera os passageiros, que são sitiantes, donas de casa, aposentados, e liga o motor, para avisar que a hora de partir se aproxima. Alguns viajantes sobem e é iniciada a saga de todos os dias do “Expresso Pinga-Pinga”, aquele veículo que liga o meio rural com o resto do mundo e, nesse trajeto, para em qualquer lugar da rodovia.

Ao longo do caminho o motorista acelera e reduz as marchas o que produz um barulho alto de motor de caminhão. As janelas ficam abertas e suas cortinas são arrebatadas pelo vento produzindo sons semelhantes a estalos. No interior do ônibus conhecidos conversam animadamente. Duas amigas comentam sobre uma criança que foi mimada pela avó e sobre a irmã que ronca. O ônibus para, entra um senhor e se senta. O cobrador, com dinheiro enrolado entre os dedos, e o bloco de passagens na mão se aproxima e pergunta: “O senhor vai descer onde?” O ancião, com voz de quem segura a dentadura com a língua responde: “ No Pé de Galinha. O senhor me deixa lá, viu?!“ O cobrador preenche a passagem e diz: “São R$ 3,50”. Ele recebe o dinheiro do passageiro e procura o troco em seu bolso repleto de moedas que tilintam. É fim de tarde, o sol penetra através das janelas. As nuvens fazem desenhos no céu e o gado caminha no pasto. Uma senhora entra no ônibus carregando uma melancia no ombro. Ela vê conhecidos e exclama: “Estão dão dando um passeio, né!? Isso é muito bom!”

Às vezes, aparentemente, “no meio do nada” as pessoas pedem para parar e, de repente, de uma pequena estrada vicinal de barro, escondida em meio à pastagem ou às árvores, surge uma pessoa ou grupo que aguardava, ansiosamente, pelo ente querido ou amigo para ajudá-lo a transportar os bens trazidos do comércio urbano. Na época das chuvas o Pinga-Pinga enfrenta a lama e durante o período de estiagem é coberto pelas nuvens de poeira que recobrem as margens da estrada de chão vermelho e tinge os cabelos dos passageiros com pó.

Na beira da estrada

Não importa a periodicidade de manutenção da estrada, a poeira ou a lama são companheiros fiéis dos viajantes que ora são impactados com os baques dos buracos da rodovia, ora se protegem do sol escaldante ou da chuva torrencial. Essa traz consigo uma lama viscosa capaz de aumentar muitas vezes o peso de qualquer calçado a ponto de ser mais prático caminhar descalço a andar com sapato no pé.

Da janela do ônibus o passageiro tem uma vista privilegiada. Pode contemplar as matas ou os campos. Pode também observar as despedidas e as cenas de encontros familiares, amistosos ou amorosos dos que chegam e daqueles que viajam esperançosos. A bagagem é variada. O pão francês é preferido por muitos. Alguns carregam fardos de açúcar, trigo, macarrão que muitas vezes são deixados na beira da estrada para serem apanhados mais tarde por aqueles que realizaram a encomenda. Nesse mundo rural, ao que parece, ninguém  leva o sustento deixado pelo coletivo na beira da estrada.

Os passageiros

O ônibus passa pela “Linha do Pavão” e para. Passageiros sobem, outros descem. Ao longo do caminho são comuns as paradas em igrejas de madeira e bares com mesas de sinuca. O “Pé de Galinha” é o entroncamento que leva à “Linha 31 de Março”, que tem a parada do Posto Imbaúba, onde a estrada vicinal de terra se encontra com a BR-364. O ônibus se dirige à rodoviária de Nova Mutum-Paraná. Passageiros sobem, outros descem, alguns permanecem sentados no interior do veículo. O motorista, que carrega seu celular pendurado no cinto como se estivesse levando uma bolsa de canivete, desce e toma café. Um passageiro acomoda uma plantadeira no bagageiro e o cobrador adverte sobre a proibição de se carregar isopores com gelo. Uma viajante, calçada com sandálias havaianas, unhas pintadas de esmalte vermelho, brincos de argola e blusa com estampas de desenhos de peles de animais entra. Ela vê uma amiga sentada ao lado de uma poltrona vazia e pergunta: “Será que tem gente sentada aqui?” A amiga sorri e responde: “Tem não, se tiver nós combina.” Ao lado uma jovem família com três crianças e as mãos repletas de certidões de nascimento plastificadas se instala. O pai, de mãos calejadas, acomoda os filhos de forma carinhosa e diz: “Uê, num sabia que poltrona de ônibus tinha cinto.” Um passageiro entra e pergunta aos demais: “Este aqui é pinga-pinga?”

O coletivo parte e segue rumo a Jacy-Paraná e Porto Velho. O motorista acelera nos trechos onde não há embarque ou desembarque. Ao longo da BR o rangido da porta que separa a cabine do motorista dos passageiros é ouvido cada vez que sobe ou desce um viajante. As casas rurais podem ser avistadas com roupas coloridas estendidas nos varais e pomares com pés de açaí, biribá, pupunha, cupuaçu, bananeiras e mangueiras. Esse é o dia a dia do “Expresso Pinga-Pinga”, que chova ou faça sol transita pelos lugares mais longínquos do Brasil, levando e trazendo aqueles que são provedores da comida nossa de cada dia.