O encontro da vida em seus desvios, homenagem póstuma a Robert Walser

Matéria para Swissinfo, rádio suíça on-line

Texto: Gleice Mere

Em 1956, quando o escritor suíço Robert Walser foi encontrado morto sobre a neve em um dos jardins da cidade de Herisau, próxima a St. Gallen, na Suíça, ninguém poderia imaginar que décadas mais tarde sua obra fosse considerada como uma das referências literárias europeias dos séculos XX e XXI. Elas foram traduzidas para dezenas de idiomas

Era 25 de dezembro e o escritor fazia mais uma de suas rotineiras caminhadas solitárias quando sofreu um ataque do coração, aos 78 anos de idade. Os últimos 27 anos de sua vida foram vividos em duas clínicas psiquiátricas onde emudeceu como autor. Os únicos pertences do escritor eram um relógio, dois livros que seu tutor, o jornalista Carl Seelig, lhe havia dado de presente, alguns trocados e a roupa que trazia no corpo. Toda sua obra foi resgatada postumamente através de pesquisas iniciadas por Seelig, um de seus grandes admiradores. Esse assumiu a responsabilidade da conduta legal do escritor em 1944, quando a última irmã de Walser faleceu. O autor foi declarado como incapacitado em 1933. Apesar de não apresentar mais sintomas de esquizofrenia, em seus últimos anos de vida, Walser se recusou a deixar de morar na clínica psiquiátrica.

Escriturário e microgramas

Aos 14 anos, por razões econômicas, Walser foi obrigado a deixar os estudos para ser aprendiz no Banco do Cantão de Berna. Um professor aconselhou seus pais a lhe enviarem para a formação de escriturário devido a sua escrita bonita e ligeira. Características de sua personalidade que lhe acompanhariam por muitos anos. Trabalhou diversas vezes como escriturário, a fim de ganhar seu sustento, pois nunca pôde viver de sua literatura. A caligrafia se tornou uma de suas principais características. O escritor desenvolveu uma técnica para seus manuscritos que posteriormente foram chamados de microgramas. Grande parte de sua obra foi escrita com lápis sobre sacos de papel em uma caligrafia que às vezes tinha somente um milímetro de altura.

Seus microgramas pareciam indecifráveis. Entretanto descobriu-se que a letra era uma miniaturização da escrita gótica alemã. Após 19 anos de trabalho, diversos especialistas puderam decifrar 526 páginas manuscritas que totalizaram mais de 4500 páginas de texto. Seus manuscritos são considerados os mais raros e caros do mercado.

Vida nômade

O autor nunca teve um endereço fixo e sempre viveu em quartos mobiliados, que mudava constantemente. Entre 1896 e 1905, período em que residiu principalmente em Zurique e escreveu seus primeiros textos literários, mudou-se pelo menos 17 vezes, sem contar as estadias em Munique, Berlim, Winterthur e outras. Esse aspecto nômade de sua personalidade, o fato de vir de uma família pobre e trabalhar como escriturário para se sustentar, também contribuíram para que em vida fosse ignorado pelo público. Seu primeiro livro, publicado em Zurique, 1904, Fritz Kochers Aufsätze (sem tradução para o português), vendeu durante os primeiros seis meses apenas 49 exemplares. Apesar da pouca ressonância Walser se demitiu do cargo de escriturário no Banco do Cantão de Zurique e foi tentar a vida como escritor em Berlim.

Período berlinense

Viveu em Berlim entre 1905 e 1913. Nos primeiros meses de sua chegada fez um curso de formação para criados e trabalhou como tal durante alguns meses num castelo em Dambrau. A prática serviçal foi tematizada em sua obra e especialmente no livro Jakob von Gunten, 1909 – mesmo título em português. No começo de 1906 o autor retornou para Berlim, onde trabalhava seu irmão Karl Walser como pintor, ilustrador de livros e cenógrafo. Foi ele quem lhe possibilitou contatos com escritores, editores e artistas. Durante esse período, além de Jakob von Gunten, publicou os livros Geschwister Tanner (sem tradução para o português) e O Ajudante na editora Bruno Cassirer. Também escreveu textos curtos em forma de prosa com estilo subjetivo que foram publicados em respeitados jornais e revistas da época. Seus textos curtos e esboços literários tornaram-se uma de suas características como escritor e não podem ser classificados em nenhuma categoria literária. Ele tematizava os acontecimentos do cotidiano, onde encontrava a poesia e os segredos da vida. Contemporâneos consagrados como Franz Kafka, Hermann Hesse e Walter Benjamin admiravam o seu talento.

Desvios

Quando retornou para a Suíça morou durante sete anos e meio em um quarto de sótão na ala dos serviçais do hotel Blaues Kreuz em Bienne, sua cidade natal. Neste período foi convidado por um círculo literário de Zurique para fazer uma leitura de seus textos. Ao fazer uma preliminar, provavelmente com um sotaque de dialeto suíço, um dos organizadores, irritado, exclamou: “O senhor não sabe falar alemão!” Pagou-lhe então o honorário e pediu a um redator do tradicional jornal Neue Züricher Zeitung para fazer a leitura. Durante o evento o escritor permaneceu sentado anonimamente entre o público. Como dizia Walser:

“Não são nos caminhos retos, porém nos desvios em que se encontra a vida.”

Curiosidades

• O teatro era uma das paixões do autor, que aos 17 anos desistiu da vida de artista após haver sido reprovado em um teste em Stuttgart.
• 1895 Robert Walser foi a pé de Stuttgart, sul da Alemanha, até a Suíça.
• O período de 1924 a 1929 foi o de maior produtividade de Walser, quando escreveu 40% de sua obra.
• Durante as suas mudanças o escritor costumava alugar quartos localizados nas mesmas ruas que já havia residido.
• Segundo Walser: “Toda pessoa excepcional tem que ter estado ao menos uma vez em Zurique.”
• Dois livros manuscritos completos e inéditos do autor nunca foram encontrados.