Emil Snethlage: um descobridor a ser descoberto

Matéria para revista Horizonte Geográfico

Texto: Gleice Mere

Entre 1933 e 1934 um jovem cientista alemão seria um dos primeiros não índios a fazer contato com algumas etnias que habitavam o vale do rio Guaporé. Oito décadas depois, seu filho publicou, na Alemanha, os diários de viagem desse pioneiro pesquisador da Amazônia. No Brasil o trabalho é para a tradução para o português, para que indígenas e pesquisadores brasileiros tenham acesso a essas informações

Entre maio de 1933 e novembro de 1934, o alemão Emil Heinrich Snethlage realizou uma expedição que o levaria ao alto rio Madeira e ao vale do rio Guaporé, cinco anos antes do etnólogo francês Claude Lévi-Strauss chegar à mesma região. O objetivo da viagem científica era ampliar a coleção do Museu Etnográfico de Berlim (Ethnologisches Museum Berlin). Nessa viagem, o pesquisador configurou um precioso registro científico de 13 povos indígenas daquela região, além da fauna, da flora e de indícios arqueológicos, que ele buscou registrar com exatidão. Durante pouco mais de um ano, Snethlage percorreu os afluentes mais importantes do lado direito do rio Guaporé e conheceu povos indígenas que não tinham nenhum ou pouco contato com a sociedade não indígena. Ele coletou mais de 2.400 objetos etnográficos, fez escavações arqueológicas, documentou a vida dos povos indígenas em um filme mudo, tirou centenas de fotografias e gravou registros de músicas indígenas em cilindros de cera, arquivados no Arquivo Fonográfico de Berlim (Berliner Phonogramm-Archiv).

O meticuloso pesquisador registrou, ainda, listas de palavras de línguas indígenas, algumas delas já extintas. Seus cadernos de campo totalizam 1.042 páginas, que trazem um conteúdo científico precioso. Além disso, o uso de diferentes mídias confere ao acervo um caráter singular, enquadrando-o na categoria multimídia, o que, sem dúvida, era uma forma de trabalho muito avançada para a época; imagine-se, por exemplo, o peso de uma câmera de filmar na década de 1930 e as dificuldades em operá-la em um ambiente como a floresta tropical úmida.

No entanto, o precoce falecimento do pesquisador, em 1939, aos 42 anos, fez com que a publicação de suas pesquisas fosse pequena em relação ao grande volume de informações coletadas em campo, e ainda inéditas.

A saga desse acervo é a mesma da história indígena e de outros estudos sobre a Amazônia brasileira, que raras vezes encontram apoio das instituições públicas nacionais para sua preservação e divulgação. Como aconteceu com a tia de Emil, a ornitóloga alemã Emilie Snethlage, uma mulher à frente do seu tempo e que, decididamente, influenciaria o sobrinho em sua resolução de tornar-se, ele também, cientista. Emilie foi a primeira servidora pública do Pará e a primeira mulher a dirigir o Museu Paraense Emílio Goeldi. Emigrou para o Brasil em 1909, como pesquisadora, e hoje é reconhecida como uma pioneira na história da ornitologia brasileira. No entanto, apesar de seus sacrifícios pessoais e da dedicação exclusiva à pesquisa na Amazônia brasileira, sempre teve problemas financeiros, devido aos constantes atrasos no pagamento de seu salário de funcionária pública.

“Surge um “pesquisador viajante”

Emil Snethlage teve sua inspiração profissional no campo das ciências naturais devido à influência de sua tia Emilie (a quem, carinhosamente, chamava de “Tante Mila”), irmã de seu pai. Desde os primórdios de sua juventude as histórias, as cartas e os presentes da tia que vivia na distante América do Sul aguçavam sua fantasia. Assim, o jovem se decidiu pela formação acadêmica em Ciências Naturais, a fim de assegurar os conhecimentos necessários para a carreira de “pesquisador viajante”. Seguiu os conselhos de “Tante Mila” e optou por estudar botânica. Sua tese de doutorado, concluída em Berlim, foi sobre a embaúba, uma árvore tropical que vive em simbiose com as formigas. Apesar disso, Emil tinha uma inclinação para a zoologia, especialmente a ornitologia. Ficou acertado que a tia Emilie seria sua mestra nesse campo da ciência.

A primeira viagem de Emil Snethlage ao Brasil, realizada em 1923, foi traçada antes da 1ª Guerra Mundial, em tempos nos quais ainda não havia preocupações com a própria subsistência. Contudo, na Alemanha do pós-guerra a economia havia desmoronado e os obstáculos para a realização da viagem foram imensos. Com pouco dinheiro o jovem Emil se arriscou a viajar até Belém em março de 1923, logo após a conclusão de seu doutoramento. Tinha confiança de que sua tia lhe introduziria na metodologia da pesquisa científica, assim como faria os contatos necessários para que pudesse prosseguir sua carreira como pesquisador viajante.

De fato, Emil não teve que esperar muito tempo até que o professor catedrático Charles E. Hellmayr, recém-empossado como Diretor do Departamento de Ornitologia do Museu Field de História Natural, em Chicago, nos Estados Unidos, o encorajasse a realizar uma grande viagem de pesquisa pelos estados do Maranhão, Ceará, Piauí e norte de Goiás (atual Tocantins) para a formação de uma coleção de aves tropicais para aquele museu norte-americano. Os primeiros meses da expedição tiveram a participação de sua tia ornitóloga. Entre julho de 1923 a fevereiro de 1924 Emilie e Emil estiveram no litoral maranhense. A partir daí Emil prosseguiu sozinho e retornou a Belém somente em abril de 1926.

Os meios financeiros para a realização dessa primeira expedição foram poucos. Mesmo assim, Emil Snethlage catalogou 449 espécies de aves, identificadas em treze ambientes de estudo. Esse trabalho foi o segundo, de seus três artigos, “Minha viagem através do Nordeste brasileiro I, II, III” (Meine Reise durch Nordostbrasilien I, II, III), publicados na revista alemã de ornitologia (Journal für Ornithologie) entre 1927 e 1928, até os dias de hoje não traduzidos para a língua portuguesa.

O Museu Field recebeu uma coleção de aproximadamente duas mil peles de aves, que ele mesmo preparou. A relação integral do material obtido e incorporado às coleções do museu foi apresentada em uma monografia, 1929, elaborada por Hellmayr a respeito da avifauna do Nordeste brasileiro. Sua tia Emilie sentiu-se orgulhosa pelo fato de Emil Heinrich haver encontrado uma ave endêmica da caatinga Megaxenops parnaguae Reiser (bico-virado-da-caatinga) que havia sido descoberta e observada pela última vez em 1903 pelo ornitólogo austríaco Otmar Reiser. Em 1940 Stresemann disse:

“Quem pôde ouvir as histórias de suas vivências, quando ele as contava em um ambiente com pessoas mais íntimas, certamente lamentou a modéstia do nosso pesquisador, que o impedia de se apresentar em primeiro plano”

Em seu trajeto à procura de aves o pesquisador entrou em contato com povos indígenas que habitavam a região. Em 1931 ele publicou, na Alemanha, o artigo “Entre os povos indígenas do Nordeste brasileiro” artigo para a Revista para Etnologia (Zeitschrift für Ethnologie (1931)).Uma documentação a respeito dos povos Timbira (Krân) e os Guajajara. Foi o início de sua carreira como etnólogo.

Viagem científica na fronteira Brasil-Bolívia

Entre 1933 e 1934, Emil Snethlage realizou uma segunda expedição científica, que seria a mais marcante de sua vida, ao longo do vale do rio Guaporé, na região fronteiriça entre Brasil e Bolívia. A viagem foi a serviço do Museu Etnográfico de Berlim e ele seria um dos primeiros não índios a fazer contato amigável com os índios Moré-Itoreauhip. Snethlage também visitou os povos Chiquitano, Abitana-Huanyam (Miguelenos), Makurap, Jabutí (Djeoromitxí), Arikapú, Wayorô (Ajurú), Tuparí, Aruá, além de travar contato com algumas etnias atualmente consideradas extintas, como Kumaná, Pauserna, Amniapé e Guarategaja.

A extensão, a riqueza e a qualidade das informações registradas por Snethlage se devem à sua perseverança e abnegação, a qual foi reconhecida por outros pesquisadores de sua época, como Hans Nevermann:

“Essa expedição foi realizada com os recursos mais simples. O seu pleno sucesso se deve à abnegação pessoal de Emil Heinrich Snethlage e à sua bondade humana, que fez com que ele ganhasse os corações dos indígenas”.

O pesquisador revelou-se atento aos menores detalhes, buscou registrar o que descobriu em seus cadernos de campo e em seu livro Atiko Y. Emil descreveu, de forma simples e pitoresca, as situações vividas na viagem à Amazônia, como nesta passagem, com data de 29 de julho de 1933, na qual relata o cotidiano a bordo do barco a vapor entre Belém e Manaus:

“Temos todo o convés livre. Sobre nós estão alojados os oficiais, abaixo está a tripulação e os passageiros da segunda classe. Lá também estão abrigados os animais: gado, ovelhas, cabras, porcos, cães, um macaco, papagaios e até uma cobra. A bagagem está empilhada, a carga se encontra no corpo do navio. O bom São Salvador consegue transportar tudo. Durante o trajeto não somente lenha para o vapor é recolhida, mas às vezes também paramos para que seja cortada comida para os animais. Às 7h é o café da manhã, às 11h o almoço, às 15h chá ou café e às 18h30 o jantar. Depois, às 20h, há um cafezinho. Assim é a nossa vida a bordo do barco.”

Em outro trecho, ele relata os esforços para conseguir comida, caça, em um seringal chamado Pernambuco. A data é 27 de março de 1934:

“Atirou-se em um pequeno falcão, que gritou bastante. Púti [um indígena que acompanhava Emil] o depenou. A pele tem um tom amarelado intenso. Cortou-se uma perna para servir de isca para se pescar piranhas. Mas elas não morderam a isca, apesar de uma tempestade se aproximar. Os índios comeram o resto do pássaro. Eu me banhei e nadei um pouco. Então começou a cair uma chuva forte e comemos um arroz sem graça com pedaços de banana. Quando estávamos terminando chegaram três índios com dois elegantes porcos do mato abatidos. Eles nos deram o menor e assaram o maior para si. Cortaram as cabeças e retiraram as vísceras. Nos deram um fígado, que foi assado no espeto e comido com sal. À noite, com muito apetite, comi um pedaço grande do pernil. Os índios estavam animados. Pegaram um pouco de farinha e conversaram durante toda a noite, enquanto chovia lá fora. (…) Três horas a pé até Arroyo Blanco foram para mim como um passeio. Perto de Arroyo Blanco nos deparamos com uma onça. Nesse ponto dividimos a comida para o caminho de volta e houve a divisão do cobiçado sal.”

Em Atiko Y, o pesquisador comenta sobre a gravação de músicas de alguns grupos indígenas:

“Enviaram-me do arquivo fonográfico estatal um pequeno aparelho e obtive a autorização para gravar algumas danças que, para mim, soam todas iguais. Uma pequena mesa é trazida para que eu possa colocar a máquina sobre ela e lhe dar corda. Os dançadores são instruídos. Eles não podem se movimentar para lá e para cá, a fim de que a gravação fique boa. Isso é muito difícil. (…) A admiração é descomunal quando eu apresento a gravação bem sucedida. Especialmente Arirain não se satisfaz e quer ouvir tudo desde o começo. Mas isso não se pode, pois os cilindros são feitos de cera e têm que ser primeiramente fundidos na Alemanha. Eu peço uma outra dança. Os movimentos são novamente os mesmos, ou parecem ser. Mas o texto é outro. Mal terminam, o que é sempre participado por um grito “hum”, eles pedem para ouvir o aparelho. E lhes deram um nome: ‘índio da floresta’. Arirain elogia a precisão do aparelho. Ele não se dá conta de que a voz nítida que se ouve dali é a sua. Certamente, para a minha sorte, pois ele e seus companheiros teriam deixado de ser inofensivos por medo de feitiçaria.”

Trajetória interrompida

Seu falecimento em 1939 interrompeu os planos de publicação dos estudos realizados na expedição científica ao vale do Guaporé. O acervo de Snethlage chegou aos nossos dias devido aos esforços da viúva de Emil, Anneliese Snethlage, que nos anos seguintes do retorno do pesquisador à Alemanha o auxiliou na sistematização das informações registradas, assim como transcreveu o manuscrito em páginas datilografadas, cujo processo de transcrição foi finalizado em 1944. De acordo com Rotger, único filho do casal e atual detentor do acervo, que vive em Aachen, na Alemanha, a promessa de Anneliese realizada no leito de morte de seu marido fez com que, nos anos seguintes, ela sofresse diversas privações para proteger o acervo de Emil da destruição da guerra e das garras do regime nazista, tendo em vista que ela não era membro do Partido Nacional Socialista, de Hitler. Anneliese faleceu em janeiro de 1981 sem conseguir cumprir a promessa feita ao seu marido, quatro décadas antes, de publicar seus estudos amazônicos. A saga pela publicação prossegue, agora abraçada pelo filho.

O acervo de Snethlage é, sem sombra de dúvidas, uma peça estratégica para o esclarecimento de muitas dúvidas que pairam no campo científico a respeito da cultura dos povos do vale do rio Guaporé e das correntes migratórias ocorridas nessa região da Amazônia meridional na primeira metade do século 20. Entretanto, há mais de 70 anos, o acervo produzido por aquele alemão, que entrou em lugares nunca antes pesquisados e encantou os indígenas ao ouvirem o som da própria voz, agoniza para não ser devorado pelo tempo. É a luta inglória para nos trazer notícias de um Brasil ainda não influenciado pela civilização ocidental.